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O Modernismo e os tradicionalistas paranoicos


Agarram-se aos antigos documentos sem nenhuma perspectiva histórica, lendo-os como se a Igreja estivesse no final do século XIX e inícios do século XX. Vivem em guerra contra moinhos de vento. O perigo é que citam os antigos documentos sem conhecerem ou sem levaram em conta todo este contexto e, assim, de modo obtusamente fundamentalístico, impressionam os desavisados. Quantos jovens católicos bem-intencionados, no desejo de serem fiéis à Tradição da Igreja, caem na armadilha desses diretores de museu eclesiástico!

Vários sites da Internet, em nome de certa visão estreita e equivocada do catolicismo, da Tradição e do próprio Magistério, têm feito graves acusações ao Concílio Vaticano II, além de mais ou menos veladas críticas aos últimos papas, de João XXIII a Bento XVI. Esses sites são de orientação mais ou menos próxima à Fraternidade São Pio X, do falecido Arcebispo cismático Dom Marcel Lefebvre, que faleceu excomungado: são todos eles tradicionalistas (não tradicionais, no sentido correto e sadio do termo e da Tradição católica), reacionários (não simplesmente conservadores, o que não seria mal nenhum. Reacionários porque seu estado de espírito é destrutivo, inquisitorial, de retranca, de visão estreita, arcaica e hostil a qualquer progresso na teologia, no dogma e na vida da Igreja).


O refrão desses referidos sites é individualizar em todos os níveis e ambientes da vida da Igreja erros e perigos à reta fé, espalhar anátemas e condenações e fomentar uma estranha e ultrapassada guerra apologética, própria do início do século XX, em nome da ameaça omnipresente da heresia modernista. Para eles, paranoicamente, todo mundo é modernista: os últimos papas, os teólogos atuais, o episcopado em geral, o clero como um todo, os vários movimentos leigos…


É mais que patente para qualquer pessoa de bom senso que esse pessoal vai rapidamente tomando o caminho do cisma. Primeiro dá-se o cisma psicológico, afetivo, que faz ver com suspeita a Igreja e seus pastores; depois, vem o cisma de fato, a incompatibilidade entre a fé do grupelho de “iluminados” e a percepção da Grande Igreja, aquela composta pelo Povo Santo de Deus em comunhão com seus legítimos pastores com Pedro e sob Pedro. Em geral – mesmo quando não diz – esse pessoal somente considera como papas sem nenhuma restrição os pontífices até Pio XII. A fidelidade deles é ao papado do passado ou, melhor falando, ao papado da cabeça deles. Os papas atuais são por essa gente julgados, crivados de crítica e manipulados nas suas intenções e magistério; se alguns deles citam Bento XVI, é de modo unilateral e desonesto, sempre manipulando o Magistério pontifício para tentar fazer o Papa dar razão às próprias irracionalidades. Que ninguém se iluda pela linguagem engomada e afetada que utilizam, cheia de “V. Revma.”, “V. Excia. Revma”, “Senhor Padre”, etc. Toda essa afetação, na verdade, somente revela um apego doentio ao arcaico e tudo que os segure no final do século XIX e início do século XX, final do pontificado de Pio IX e pontificado de Pio X.


Como muitas pessoas perguntam-me sobre esses sites e pedem-me uma avaliação sobre eles, pois que estranham a animosidade em relação à Igreja e ao Episcopado, aos teólogos e a muitas sãs manifestações da vida eclesial, resolvi descrever de modo esquemático e bem simples a crise modernista, suas consequências e o atual estado da questão, para que o leitor possa compreender o quanto essas pessoas nominalmente católicas, mas às portas do cisma, aparentemente tão fiéis à Tradição e ao Magistério, mas deles tão distantes de fato, estão equivocadas e distantes do reto sentir da Igreja de Cristo. Como me dirijo ao grande público, procurei ser sucinto e evitar detalhes aprofundados sobre questões teológicas que escapariam de modo geral às pessoas. Meu intento é somente fazer com que se compreenda a posição da Igreja e o erro dos tradicionalistas reacionários.


Não nutro nenhum desejo de polemizar ou dialogar com esses grupos, que, de tão radicais, fechados e fundamentalistas, são impenetráveis a qualquer argumentação que não se enquadre em seus estreitos e pobres horizontes. Tentar dialogar com eles é como tentar dialogar com os protestantes fundamentalistas, sem tirar nem pôr. Nem mesmo frequento tais sites, pois de modo algum valem a pena. Meu interesse é somente prevenir de modo argumentado e metódico aqueles que se sentem perplexos ante a aparente solidez da argumentação desses reacionários. Assim, cumpro somente com meu dever de defender a fé católica e ajudar o rebanho de Cristo para que não caia nas armadilhas que tantas vezes aparecem na sua peregrinação terrestre.


1. A situação da Igreja na segunda metade do século XIX e início do século XX


Para bem se compreender o modernismo e a reação do Papa em relação a ele, é necessário ter em mente a situação histórica da Igreja na segunda metade do século XIX e primeiras décadas do século XX.


Até a Revolução Francesa, a Igreja tinha o controle moral de todos os setores da vida humana: havia ainda uma sociedade de inspiração cristã em todos os seus grandes aspectos. Tudo mudou a partir da Revolução de 1789: foi nascendo uma sociedade fora dos limites da Igreja, uma sociedade industrial e urbana (com valores como o consumo, o sucesso, a intensa circulação de ideias e riquezas, o surgimento dos proletários e das ideias socialistas) animada por novas correntes filosóficas desligadas da tradição escolástica medieval (a filosofia agora não levava realmente Deus em conta: procurava pensar o mundo a partir de si mesmo, da imanência, sem voltar-se para o Transcendente); desenvolveram-se intensamente as ciências naturais, com seu método experimental (já não se prestava atenção na autoridade de quem afirmava, mas nas provas que eram apresentadas) e a ciência histórica, com o método histórico-crítico, que procurava reinterpretar criticamente as fontes históricas (assim, tendia-se a uma releitura dos fatos históricos a partir de um estudo crítico das fontes).


Diante dessa cultura moderna e estranha ao controle eclesiástico – muitas vezes até hostil e contrária à fé cristã -, a Igreja procurou erguer barreiras contra o mundo exterior. Toda esta situação de profunda e veloz mudança pegou a Igreja desprevenida, sem um instrumental teórico próprio para dialogar eficazmente com a nova situação, de modo que a Igreja se encontrou incapaz de enfrentar e argumentar com profundidade, serenidade e solidez em face às novas e urgentes exigências. Restou à nossa Mãe católica uma posição muito ruim: colocar-se na defensiva, sentindo-se como uma fera acuada; e, como toda fera acuada, atacou ferozmente procurando defender-se de uma situação que poderia destruir todo o fundamento da doutrina cristã.


Já o Santo Padre Pio IX (1846-1878) teve que enfrentar tal situação. Havia primeiramente a ferida aberta e supurante, provocada pela Questão Romana: a Igreja perdera os Estados Pontifícios, exatamente em nome das novas ideias sociais e da democracia… Isto gerava todo um estado de espírito de contraposição ao mundo moderno, fazendo a Igreja assumir uma atitude reacionária, já que se posicionava contra tudo que tivesse ligação com a “revolução”: ideias como democracia, liberdade religiosa, liberdade de consciência, luta pela justiça social, etc, eram vistas com infinita desconfiança porque eram defendidas exatamente pelos ambientes liberais e racionalistas que se contrapunham à religião cristã. O ideal, para a hierarquia eclesiástica, seria o impossível: a volta do Antigo Regime, da monarquia absoluta pré-Revolução Francesa. A mentalidade católica tornou-se, assim, reacionária, fechada, fossilizante. De uma Igreja que tinha sido tantas vezes criativa e propositiva na Antiguidade e na Idade Média, passava-se a uma mentalidade estéril e de retranca. Em 1864, Pio IX escreveu a Encíclica Quanta Cura e o Syllabus, um catálogo de 80 erros contemporâneos, contendo condenações generalizadas de tendências liberais dentro da Igreja. Só para se ter uma ideia da mentalidade de então: a 76ª. tese condenava quem afirmasse que o fim do Estado Pontifício ajudaria à liberdade da Igreja; a 80ª. tese negava que o papado pudesse se reconciliar com o progresso. Note-se que a Igreja foi assumindo uma atitude profundamente negativa em relação ao mundo atual, tornando-se não somente conservadora, mas reacionária mesmo – no sentido em que adota uma postura defensiva, hostil e negativa a tudo quanto vinha do mundo moderno… Na verdade, ela se sentia sempre mais perplexa ante uma realidade forte, difusa, a ela hostil e com a qual ela não sabia como estabelecer um diálogo ou neutralizá-la. Já aqui é necessário ressaltar que tal atitude da Igreja não foi culpa do Papa ou de quem quer que seja. Tratava-se de uma situação para a qual a Igreja da época realmente não estava preparada para e não soube como enfrentar essa realidade.


O sucessor de Pio IX, Leão XIII, tentou diminuir o abismo entre a Igreja e a ciência moderna. Ao menos na questão social deu um importante passo com a Encíclica Rerum novarum. Passo, sem dúvida, grande, mas nem de longe suficiente, para frear um afastamento sempre maior entre mundo e Igreja. Baste recordar a situação dolorosa do proletariado, o inchaço das cidades, o desenraizamento da população europeia que agora deixava de ser rural e perdia seus referenciais… A Igreja não percebeu nada disso a tempo e a classe operária foi seduzida pelas doutrinas filosóficas de esquerda, sobretudo o marxismo. Uma outra tentativa do Papa para responder de modo intelectual às novas ideias foi restaurar o tomismo, isto é a filosofia da São Tomás de Aquino, valorizando a neo-escolástica, com a Encíclica Aeterni Patris, em 1879. Muitos eruditos católicos procuraram responder aos novos problemas a partir de São Tomás de Aquino. Um luminoso exemplo foi o Pe. Reginaldo Garrigou Lagrange, eminente teólogo dominicano. O problema é que o tomismo tradicional simplesmente não respondia mais às questões de modernidade. Era como a tentativa de colocar vinho novo em odres velhos… Toda genialidade e frescor de São Tomás – bem próprios e eficazes na Idade Média – foram engaiolados em fórmulas já prontas, em respostas mais ou menos engomadas, que realmente não satisfaziam e pouco diziam ante os grandes problemas colocados pela modernidade. A filosofia neo-escolástica parecia uma receita fria e irreal ante os problemas colocados pelas novas correntes filosóficas. Uma atitude positiva de Leão XIII foi ainda tomada na Encíclica Libertas (1888), na qual se pronunciou contra o “casamento do trono com o altar”, defendido pelos papas anteriores. Na França, chegou mesmo a incentivar uma política de aproximação entre os católicos e a república – coisa inadmissível para alguns papas anteriores.


A Leão XIII sucedeu Pio X, homem virtuoso e afável, que deu ao seu pontificado uma orientação proeminentemente pastoral: incentivou a comunhão das crianças e sua prática frequente, promoveu o canto gregoriano e a catequese ministrada por leigos, preparou a codificação do Direito Canónico (promulgado depois por Bento XV), determinou a reforma do breviário e permitiu que os católicos italianos votassem – o que fora proibido no pontificado de Pio IX, desde que os nacionalistas italianos tomaram os Estados Pontifícios e unificaram a Itália. Foi no pontificado de Pio X que estourou de modo virulento a crise modernista, fazendo este Papa fechar-se mais ainda para o mundo de então.


2. O modernismo


Diante de toda esta situação, certamente, os desafios que o mundo colocava para a Igreja repercutiram profundamente dentro da própria comunidade católica. Muitos estudiosos e leigos mais conscientes procuraram encontrar respostas novas para os novos problemas. Havia realmente muitos que, procurando conciliar a fé católica com a nova mentalidade, terminavam por trair essa fé que procuravam apresentar de um modo novo. Mas, havia outros que, com equilíbrio, e sem se afastar em nada da essência do catolicismo, procuravam realmente, como o bom escriba de que fala o Evangelho, tomar do seu tesouro coisas novas e velhas: mantendo-se fiéis à Tradição, tentavam, no entanto, apresentá-la de modo novo, compreensível à sensibilidade de um mundo profundamente transformado. Este último grupo é chamado de progressista.


Infelizmente, ante a situação tão desafiadora e complexa, o Santo Padre Pio X, avaliou de modo extremamente negativo toda e qualquer tentativa de diálogo entre os católicos e o mundo moderno. Diante de tantas e tão velozes mudanças, o medo do Papa era que um diálogo da teologia cristã com as novas tendências viesse a dissolver o núcleo da fé católica. Sendo assim, sem separar nem distinguir os que se rendiam ao espírito do mundo (modernistas propriamente ditos) e os que com ele dialogavam, mas sem em nada ferir à Tradição (os progressistas), denominou a todos de modernistas e classificou a tendência de dialogar com as ideias modernas e a elas fazer concessão de ”modernismo”. Poderíamos dizer, portanto, que modernismo, de modo geral, é um movimento que desejava a reforma da Igreja e de sua doutrina para adaptá-las às exigências colocadas pela sociedade moderna. Observe-se que se trata de um conceito amplo demais, demasiadamente abrangente, englobando num só grupo segmentos e mentalidades realmente muito diferentes e, às vezes, incompatíveis. Pio X colocou a todos no mesmo saco! Na realidade esses teólogos católicos do fim do século XIX e início do século XX, conforme seu modo de pensar, suas ideias a respeito de reforma, sua origem e sua educação, pertenciam às mais diversas e até opostas tendências. O que os “modernistas” – como o Papa os chamava – tinham em comum era a vontade de superar o abismo que se abrira entre a Igreja e o mundo moderno, entre a teologia e a ciência.


O Santo Padre Pio X viu no modernismo uma perigosa irrupção do espírito do mundo dentro da Igreja e o definiu como o compêndio e o veneno de todas as heresias. Certamente, havia um bom número de pensadores que, no intento de dialogar com as novas ideias, terminavam por desfigurar a fé cristã. Uma posição bastante comum desse grupo heterodoxo era aquela de converter a experiência religiosa em critério decisivo da relação do homem com Deus. Isto em oposição ao conceptualismo da neo-escolástica oficial. Em palavras mais claras: para os modernistas radicais, a experiência religiosa, a religião, era uma questão sobretudo de sentimento, de subjetividade. Isto era gravíssimo, pois sendo assim, a religião já não era uma questão de verdade, mas simplesmente de sentimento, a revelação de Deus a Israel e em Jesus Cristo era reduzida a uma questão sentimental… Note-se que se fosse assim, Deus não se teria revelado e tudo quanto soubéssemos de Deus não passaria de uma ideia feita pelo próprio homem sedento de Absoluto. Tratam-se de ideias imanentistas, subjetivistas e relativistas, já que a verdade seria feita pelo próprio homem e teria o homem como critério. Com isto, já não teria mais muito sentido a Igreja como estrutura nem o Magistério teria alguma autoridade dada por Deus! Aliás, o próprio ser divino de Cristo terminaria colocado em xeque, pois o Infinito não poderia se manifestar diretamente neste mundo finito.


Em 1907, com o Decreto Lamentabili, Pio X condenou 65 sentenças dos dois modernistas mais famosos: o francês Alfred Loisy e o inglês Geroge Tyrell e na Encíclica Pascendi, o Papa procurou traçar um perfil do modernismo como um sistema completo, homogéneo, uma verdadeira síntese das heresias, criadas para aniquilar não apenas a religião católica, mas toda e qualquer religião. Já afirmei antes e repito agora que, assim fazendo, o Santo Padre colocou num mesmo saco gatos muito muito diferentes! A Pascendi juntava e reunia num único personagem – o herege modernista – características encontradas em intelectuais muito diferentes e até opostos entre si. O Papa afirmava ainda que a periculosidade dos modernistas seria tanto maior porque se disfarçavam com uma vida moralmente austera, porém motivada por orgulho e soberba. As medidas tomadas por São Pio X foram drásticas: os clérigos foram severamente exortados a voltarem à filosofia de são Tomás de Aquino; as dioceses deveriam constituir comités de vigilância, que fiscalizariam publicações e ensino dos sacerdotes, devendo enviar relatórios periódicos a Roma; aos padres suspeitos somente seriam confiadas funções sem importância nem incidência; salvo com a permissão expressa, os clérigos não deveriam ir às universidades estatais, sobretudo não deveriam frequentar os cursos de filosofia e de história. Ora, tal atitude dura de São Pio X despertou a reação áspera de alguns modernistas. Isto fez o Papa determinar, em 1910, o juramento antimodernista. Por causa dos duros protestos, Pio X dispensou do juramento somente os professores de teologia da Alemanha.


Como se pode imaginar, este foi um período muito triste na história recente da Igreja: (1) Triste porque a sociedade mudava rapidamente, desenvolvia-se numa velocidade vertiginosa, as novas ideias e as recentes descobertas científicas pululavam e a Igreja não sabia como reagir e muito menos como interagir com toda esta situação; (2) Triste porque um Papa santo, de coração manso e humilde e de profundo sentido pastoral, como foi Pio X, sentindo-se no dever sagrado de defender a fé católica, não conseguiu separar aqueles que realmente rendiam-se ao espírito das novas ideias sem discernimento (modernistas) daqueles que queriam dialogar com a nova mentalidade e aproveitar as novas ideias naquilo que tivessem de compatível com a fé cristã (progressistas). (3) Triste porque se criou na Igreja um terrível clima de tensão, desconfiança, fofoca, delação e perseguição. Foi um período no qual muitas vezes esqueceu-se a caridade e o respeito pelo irmão, prevalecendo a desconfiança e o mau juízo… Isto porque surgiram grupos integristas, que procuravam nos ensinamentos da Igreja e do Papa, de modo unilateral e infantil, resposta a todas as perguntas, inclusive as da ciência e da arte, bem como da vida particular e política: “Nós somos católicos romanos integrais, isto é, consideramos verdade absoluta não apenas a doutrina eclesiástica tradicional, mas também as orientações do Papa sobre coisas práticas, fortuitas, isto é, sobre todas as coisas e pessoas. A Igreja e o papa constituem uma unidade perfeita” (integristas) – estas são palavras de uma revista integrista da época. Claro que tal mentalidade nada tinha com a verdadeira Tradição católica! Tem-se aqui uma outra tendência herética, extremista: um ultramontanismo doentio e fanático, que desejava ser mais papista que o Papa! Contra quem pensasse diferente, os integristas eram agressivos e inquisitoriais. É deste ambiente terrivelmente fechado, fanático e reacionário que surgiu o Sodalitium Pianum (“piano”, aqui, refere-se ao Papa Pio X). Esse grupelho de ânimo intransigente era uma associação secreta (Sapinière) fundada e dirigida por Mons. Umberto Benigni, bispo subsecretário de Estado, e considerava sua tarefa mais urgente desmascarar todos os modernistas, estigmatizá-los e providenciar sua condenação eclesiástica. Em outras palavras: tínhamos na Igreja um serviço secreto de informação e delação uma KGB… Infelizmente, esse grupelho recebeu apoio financeiro e moral de São Pio X, apesar de vários membros da Cúria Romana serem contrários a tal grupo, que era fechado, exagerado, policiesco e tendente ao fanatismo. Graças a Deus essa confraria foi imediatamente colocado no canto pelo sucessor de Pio X, o Papa Bento XV, em 1921. Pio X apoiava tal grupo porque foi se sentindo cada vez mais sozinho e ameaçado no seu modo de avaliar a situação – realmente o Papa fechou-se demasiadamente, vendo perigo em tudo!


Não há dúvidas de que a situação era realmente perigosa e difícil. Os modernistas radicais colocavam sim em perigo a fé católica. Além do mais, o modernismo extravasou o âmbito meramente teológico: como escapadouro das ânsias represadas, desenvolveu-se também como modernismo político, que defendia o liberalismo, esforçando-se para imbuir do espírito católico as novas forças da democracia e das lutas sociais. Em outras palavras: havia pensadores católicos apoiando abertamente a democracia, a separação entre Igreja e Estado e várias das reivindicações sociais da classe operária – reivindicações que hoje todos pensamos normalíssimas, mas que na época eram inovadoras e revolucionárias. Ante a posição decididamente negativa do Papa, desabafava o modernista radical Ernesto Buonaiuti: “Tentamos trazer as doutrinas do catolicismo para mais perto do nosso tempo, falando a sua linguagem e expressando seus próprios pensamentos, a fim de que por esse contato a mútua semelhança, que vai longe, se evidencie. Não podemos acreditar que a Igreja continue considerando destrutivo o nosso programa. Em alguma tentativa de aproximação podemos nos ter enganado, e nesse caso não há nada que mais desejamos do que uma advertência paternal. Mas contra a nossa atividade, cheia de sacrifícios e abnegações, não se lance uma áspera e irrevogável condenação!” Na Alemanha, os católicos reformistas (que não eram modernistas e, infelizmente, foram tratados como tais), desejavam harmonizar a vida e a doutrina da Igreja com o progresso da cultura e da ciência, sem violar a revelação e a fé, nem as estruturas fundamentais da Igreja. Mesmo assim, também eles não escaparam da suspeita e das restrições.


Repito: tudo isto foi muito triste! Se tivesse havido espaço para o diálogo, se tivesse havido mais discernimento para separar alhos de bugalhos… Mas, nada disso: diante do perigo grande, sorrateiro, diante do inimigo cujo rosto era desconhecido e cujos contornos eram de difícil delimitação, a condenação foi taxativa e geral, levando a um duplo resultado negativo: (1) os modernistas realmente modernistas terminaram por romper com a Igreja, sendo excomungados e degenerando de vez na sua doutrina herética e (2) os moderados, que realmente não tinham em nada se afastado da autêntica fé católica e muitíssimo teriam contribuído para o diálogo são e correto entre a Igreja e a sociedade que estava nascendo, foram silenciados e obedeceram. O problema é que isto deixou a Igreja falando sozinha, trancada em si mesma, sem uma real incidência no mundo que caminhava por sua própria conta. Isso é muito ruim porque um Deus sem mundo termina levando a um mundo sem Deus! A teologia, assim engessada e reprimida, degenerou-se, ficando extremamente medíocre: os professores eram obrigados simplesmente a repetir velhas explicações e fórmulas das quais sabiam serem ultrapassadas e ineficazes para exprimir a fé, pois que já não serviam para alimentar uma piedade, um pensamento e uma pastoral que fossem sal e luz para o mundo tão transformado… Muitos excelentes teólogos, homens santos e fiéis à Igreja, foram colocados sob suspeição de serem modernistas sem motivo algum; isto provocou muitos danos à teologia… Eis alguns exemplos: (1) O grande exegeta, Pe. Marie-Joseph Lagrange, OP, procurou aplicar os princípios do método histórico ao estudo da Sagrada Escritura e às origens do cristianismo, mas isto sempre harmonizando suas investigações progressistas (não modernistas) com o ensinamento oficial da Igreja. Apesar de toda sua prudência, foi objeto de denúncias pelos integristas reacionários e suas pesquisas foram imensamente prejudicadas. (2) No âmbito da filosofia, Maurice Blondel, católico sério e leigo consciente, quis apresentar a fé e suas consequências práticas com um novo vigor, utilizando o seu assim chamado “método da imanência”. Seu desejo era demonstrar que a fé é plenamente condizente com o homem moderno, pois que a revelação cristã seria a plenitude de uma aspiração natural e primordial do homem. Pois bem: em nome de um conceito errado atribuído erroneamente a Santo Tomás lido de modo capenga, Blondel foi denunciado como modernista pelos integristas de sempre, acusado de destruir e esvaziar a realidade sobrenatural e a gratuidade da graça de Deus. A mesma acusação seria feita ao grande Pe. De Lubac décadas mais tarde. Em síntese: tudo que não fosse a velha cantilena tomista cantada de um modo a-histórico, míope e conceptualista, era colocado sob suspeição pelos integristas que dominaram no pontificado de São Pio X. Resultado final de tudo isto: os graves problemas da relação entre fé e modernidade permaneceriam sem solução até que começassem a ser afrontados claramente e com coragem a partir do Vaticano II! É uma lição que deveríamos aprender: não adianta – mesmo com toda a boa vontade do mundo – colocar os problemas debaixo do tapete da história: cedo ou tarde ter-se-á que afrontá-los, de um modo ou de outro!


Somente a título de ilustração, eis alguns breves acenos sobre Alfred Loisy, que foi o mais conhecido dentre os modernistas. Era sacerdote carmelita. Pretendia sobretudo aplicar o método histórico-crítico também à história das origens bíblicas e da Igreja. Em seus cursos no Instituto Católico de Paris e em sua revista L’Enseignement biblique, seguindo a exegese protestante alemã, afirmava que Moisés não poderia ser o autor do Pentateuco e que os onze primeiros capítulos do Gênesis não pertenceriam ao género literário histórico. Depois, transcendendo a questão bíblica, procurou analisar a natureza dos dogmas na Igreja. Fê-lo relativizando de modo forte a revelação e o dogma. Na verdade, desejava confrontar o sistema vigente, a-histórico, da neo-escolástica com as ideias newmanianas sobre a evolução do dogma. Ele pretendia mostrar que a Igreja e o dogma não vão contra as intenções de Jesus, mas foram consequência de seu ensinamento. Afirmava, por exemplo, que a Igreja era a única forma pela qual, após a morte de Jesus, poderia sobreviver o anúncio do Reino pregado por Cristo. O que Jesus havia proposto somente poderia sobreviver com a adaptação às novas exigências históricas, com a procura de novas repostas para as novas situações que Jesus não havia previsto e, por isso, não tinha podido revelar aos seus discípulos. Justamente por isso os dogmas não constituiriam verdades caídas do céu, mas eram somente o produto da história. A identidade decisiva entre o Jesus e a Igreja não estaria na manutenção da mesma verdade, mas no fato de ambos estarem na mesma corrente de vida. Interessante aqui notar que a intenção principal de Loisy não era criticar, mas apologizar, defender a fé contra o protestantismo liberal de Adolf Harnack; só que os princípios que usou para tanto levavam à conclusões incompatíveis com a fé católica.


Esta é a complicação e a fraqueza do modernismo: muitas vezes eram intenções boas, intuições corretas, mas apresentadas de modo inaceitável para a fé, pois terminava por reduzi-la a um fenómeno meramente humano e imanente, sem vínculo objetivo e real com o Transcendente. Analisemos as afirmações acima: Loisy estava correto quando percebera que o dogma evolui na história – e isto sempre aconteceu na vida da Igreja – o Cardeal Newman, por exemplo, tinha-o demonstrado muito bem. O problema é quando o Carmelita atribui isso simplesmente a um dinamismo histórico, esquecendo que a Igreja é guiada pelo Espírito Santo que preside a esse processo e que tem um órgão próprio para avaliar e discernir, que é o Magistério do Papa e dos Bispos em comunhão com o Sucessor de Pedro. Como o teólogo carmelita apresenta as coisas parecia que o dogma era um produto do dinamismo meramente histórico e cultural, obra meramente humana, sem nenhuma participação de divina. Foi condenado e, posteriormente, radicalizou suas posições, afirmando que a revelação e a fé em Deus pareciam até se volatilizar. Não foi por acaso que Loisy se tornou cada vez mais racionalista, a ponto de negar a divindade de Jesus Cristo e reduzir a experiência religiosa a uma simples questão filantrópica e humanitária. Seu mérito foi ter levantado, no início do século XX, certos problemas que antes dele praticamente não tinham sido enunciados na Igreja. Apesar de todo o seu exagero e seus erros, sua obra abriu caminho para a posterior aceitação do método histórico-crítico na Igreja.


3. O período pós-modernista


Com uma perseguição implacável aos modernistas – fossem eles verdadeiros ou supostos -, São Pio X realmente conseguiu livrar a Igreja do tsunami que a cercava: aquela mentalidade nova e, muitas vezes, incompatível com o cristianismo. Como já foi dito, as duras condenações de modo amplo e sem matizes esterilizaram por um bom tempo a pesquisa dos exegetas católicos. Num clima assim, muitos, por prudência, se fecharam na erudição e na arqueologia. Somente a partir de Pio XII, com a Encíclica Divino afflante Spiritu, começou-se, pouco a pouco, um pequeno ensaio de afrouxar mais as rédeas da exegese e de incentivar os exegetas no seu trabalho. O mesmo valeu para os teólogos e a teologia de modo geral, até então sob estrita e fossilizante vigilância integrista dentro da Igreja. Agora, já não mais se obrigava os teólogos a afirmarem que o dogma não tinha história. Alguns teólogos, como Chenu, Congar e De Lubac propuseram uma rica e fecunda teologia fortemente enraizada nos Padres e na história da Igreja. Apesar de serem plenamente ortodoxos, ainda tiveram que enfrentar um clima de suspeitas em certos ambientes adeptos de um tomismo dogmático e fossilizado que, além de errar por pensar que o tomismo é a única escola de teologia realmente católica, defendiam uma interpretação de São Tomás que não era realmente fiel ao pensamento e às intuições do Doutor Angélico. Esses teólogos brilhantes foram colocados injustamente em linha de fogo, sua teologia foi denominada de modo pejorativo de Nouvelle Théologie, “Nova Teologia”, no sentido de ser infiel à Tradição eclesial. Graças a Deus esse importante grupo de teólogos, mesmo sofrendo incompreensões, manteve-se fiel à Igreja e levaram adiante seus estudos, que foram de inestimável valor para a renovação da e colocaram as bases para o Concílio Vaticano II. O próprio Papa Pio XII sofreu influência desses ambientes reacionários, chegando a desconfiar de alguns aspectos da teologia do Pe. De Lubac e condenando-os indiretamente na Encíclica Humani Generis. Em todo caso, uma certa abertura estava realmente em curso: tanto a eclesiologia como as relações entre a Igreja e a modernidade iam, aos poucos, sendo abordadas não mais simplesmente em termos jurídicos, mas iam sendo enfocadas de modo mais positivo, vital e dinâmico. O próprio Papa Pio XII começou a interagir com mais abertura em relação ao mundo circunstante. Começou-se a defender pacificamente – como o filósofo cristão Jacques Maritain – que a Igreja não deveria exercer uma tutela sobre o âmbito temporal. Isto ficara na Idade Média, por motivos históricos bem precisos e justificáveis; agora tal pretensão seria inconcebível!


Contudo, foi somente com o Vaticano II que a Igreja deu o passo decisivo na tentativa de dialogar com o mundo moderno. Antes mesmo dos documentos do Concílio, é importante salientar a própria mentalidade que dirigiu a Assembleia conciliar: o desejo de apresentar o Evangelho e a fé católica na plena fidelidade à Tradição mas, por outro lado, deixando de lado aqueles elementos não essenciais que eram expressões próprias de uma situação histórica ultrapassada. Distinguia-se a fé das expressões nas quais ela pode ser expressa; distinguia-se o que é doutrina normativa e definitiva, pertencente ao Depósito da Fé, daquilo que é contingente e pode ser mudado e melhorado – distinções que não puderam ser feitas por Pio IX e Pio X pelo clima envenenado da época da crise modernista. Assim, problemas como o ecumenismo, a questão exegética, a questão social, a liberdade religiosa, a avaliação das várias religiões não-cristãs, particularmente do judaísmo e do islamismo, tudo isto foi revisto à luz da nova situação histórica e de uma mentalidade não mais reacionária, mas, ao invés, positiva e propositiva. É importantíssimo notar que não se tratou de renegar o passado, de adulterar a fé ou de desdizer a doutrina no que tem de imutável, mas sim de ser fiel ao património perene da Mãe católica, apresentando-o, no entanto, de modo dialógico em relação ao homem atual. Isto a Igreja fizera já quando saíra do ambiente judaico para o mundo grego, quando deixara o mundo greco-romano para penetrar no mundo celta, depois, fê-lo novamente quando teve que interagir com o mundo germânico. Novamente iria fazê-lo agora, dialogando de modo crítico e construtivo com a mentalidade saída do iluminismo, do racionalismo e do cientificismo da modernidade. Neste novo horizonte, o Magistério eclesial pôde reavaliar com mais serenidade e profundidade várias das teses que no tempo da polémica modernista foram condenadas como heréticas ou perigosas para a fé. Separando o joio do trigo, evitando os pressupostos filosóficos incompatíveis com a fé, os Papas e o Episcopado do pós-concílio, de modo sereno e decidido vêm fazendo este trabalho de discernimento. Muitas vezes o Magistério tem aprovado as novas impostações da teologia e da exegese e, outras tantas vezes tem repreendido, corrigido e até punido os desvios e erros. É isto que os tradicionalistas empedernidos (herdeiros da mentalidade integrista, mesquinha e tacanha do Sodalitium Pianum) e muitos teólogos excessivamente progressistas (herdeiros do modernismo, que falam num tal de “espírito do Concílio” para defenderem tudo quanto é teologia extravagante e contrária à fé) não conseguem entender. Quem tem seguido com seriedade e empenho os passos do Magistério da Igreja nas últimas décadas percebe claramente o cuidado de fazer constantemente este discernimento, bem como o belíssimo equilíbrio do Magistério dos papas recentes.


4. Os tradicionalistas reacionários


É todo este processo, certamente tão guiado pelo Espírito Santo como ocorrera nas demais épocas da história da Igreja, que os tradicionalistas não conseguem compreender. Agarram-se aos antigos documentos sem nenhuma perspectiva histórica, lendo-os como se a Igreja estivesse no final do século XIX e inícios do século XX. Vivem em guerra contra moinhos de vento. O perigo é que citam os antigos documentos sem conhecerem ou sem levaram em conta todo este contexto e, assim, de modo obtusamente fundamentalístico, impressionam os desavisados. Quantos jovens católicos bem-intencionados, no desejo de serem fiéis à Tradição da Igreja, caem na armadilha desses diretores de museu eclesiástico! Aí, de modo tolo e com uma ignorância de dar pena, saem acusando todo mundo de modernista, impugnando teólogos sérios e importantes, como o Pe. De Lubac, que foi convocado para perito do Concílio pelo Bem-aventurado João XXIII, foi elogiado por Paulo VI, feito cardeal por João Paulo II e foi um dos principais mestres de Bento XVI.


Analisando com calma, pode-se afirmar – e eu afirmo sem medo – que a “igreja” (com “i” minúsculo) propugnada por esses tradicionalistas pouco tem da Igreja de Cristo, sustentada pelo Espírito: a visão deles é de uma igreja fossilizada, parada numa determinada época (e que não é a época apostólica), que não compreende as necessidades do mundo e nada tem a dizer a ele; é uma igreja medrosa, infiel ao seu mandato de ser sal e luz; uma igreja aleijada, que olha para trás e não para frente, ao encontro com o Senhor que vem; uma igreja que concebe o riquíssimo tesouro da Tradição como um baú velho, com respostas amareladas como as anotações de um professor repetitivo e preguiçoso, que morreu intelectualmente; é uma igreja que confunde o essencial com o acessório, a verdade com as maneiras com as quais esta pode ser apresentada; é uma igreja que coloca São Tomás acima da Escritura e dos Santos Padres, que coloca a Idade Média acima da época apostólica, que de modo desonesto desqualifica os papas do presente em nome dos papas do passado numa herética contraposição… É interessante que até mesmo a linguagem desses tradicionalistas, pouco amigos da Tradição, é empolada e afetada… Um sinal claro de que vão cada vez mais perdendo contato com a Igreja real é que se isolam do Episcopado e dos demais irmãos na fé. Interessante que, cheios de presunção, se arvoram em defensores e intérpretes da Tradição, função que Cristo confiou aos Bispos e, para tanto, os assiste com o Espírito Santo!


Para concluir. Elaborei este texto para esclarecer àqueles que, bem-intencionados, ficam confusos ao lerem em sites tradicionalistas e reacionários – descendentes diretos dos integristas do Sodalitium Pianum – citações de antigos documentos do Magistério que parecem contradizer as afirmações do Magistério atual. Também quis explicar o que foi o modernismo e quais os seus perigos. Quis ainda mostrar como algumas coisas que foram condenadas em bloco pelo Magistério da época devido a precisas condições históricas, atualmente, purificadas, foram acolhidas e ensinadas pelo Magistério eclesiástico sem nenhuma contradição com a fé católica e a perene Tradição da Igreja.


Não tenho neste texto objetivo polémico. Não perco tempo polemizando com reacionários, porque o reacionarismo é uma doença da inteligência. Pode-se ser tranquilamente conservador, pode-se ter esta ou aquela sensibilidade litúrgica, teológica, espiritual, mas ser reacionário impede o diálogo, mata a caridade e turba a compreensão. Meu escrito não é para os reacionários, mas para os leitores sinceramente católicos, fiéis à Igreja de hoje e de sempre que, frequentando meu site e meu blog, procuram orientação de alguém que deseja sinceramente estar em comunhão com o atual Sucessor de Pedro. Para estes dei-me a esta pequena fadiga deste texto. Se ajudar sentir-me-ei recompensado.


Dom Henrique Soares da Costa

Bispo Auxiliar da Arquidiocese de Aracaju


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